domingo, setembro 22, 2002


CIDADE DE DEUS, o filme

Arnaldo Jabor

"Não. Cidade de Deus não é um filme, apenas. É um fato
importante, é um acontecimento crucial, um furo na
consciência nacional. Fui ver o filme e saí
modificado. Tenho a impressão de que esse filme não se
diluirá com o um espetáculo digerível. Nós não vemos
esse filme; esse filme nos vê. Com essa epopéia da
guerra dos miseráveis que nasceram no livro de Paulo
Lins, sentimo-nos desamparados na platéia. Nossa vida
de espectadores, com roupas e comidas, com namorada do
lado, com pizza depois, ficou ridícula.Cidade de Deus
faz balançar nossa sensação de "normalidade".
Não dá mais para acreditarmos apenas que o crime tem
de ser combatido para que a "ordem" seja mantida.
Destrói-se nosso "ponto de vista" e viramos
uma platéia de culpados. Esse filme agrega uma
descoberta à opinião pública do país que nunca mais
poderá ser ignorada. Enquanto a miséria era dócil,
ninguém se preocupava com ela. Nossas empregadas
surgiam de manhã, sumiam de noite, nossos faxineiros,
co! peiros e engraxates eram seres abstratos. Os
pobres pareciam não ter vida interior. Podíamos
romantizá-los, rir deles, paternalizá-los, tudo. Mas a
TV, a comunicação democratizante do consumo, fez
surgir uma massa miserável, mas desejante.Pulsa nos
bailes funk uma brutal corrente de expressão, a
violência como fome e linguagem. A indústria cultural
estimulou o desejo e a cocaína e o tráfico de armas
trouxeram os meios para sua possível realização. Depo
is que a cocaína despejou milhões de dólares sobre o
mundo da miséria, o contentamento letárgico da
exclusão virou fome de consumo, a aceitação
da escravidão disfarçada de "emprego" virou uma
invasão do país "branco".
Não é mais inferioridade; é diferença. Agora, é pau a
pau. Existimos nós e eles. Um outro mundo está
aparecendo, não como decadência ou ameaça, m
as como sinistra cultura, pavorosos valores, tudo sob
o manto sombrio da morte.Estamos enfrentando agora a
morte no olho. A tragédia das periferias brasileiras
sempre ! foi um terremoto ignorado, para o qual
ninguém enviou patrulhas de salvamento. Já houve um
terremoto e todos nós tentamos esquecê-lo, subindo
grades em nossas casas, com os socialites cheirando o
pó malhado de otários e perpetuando essa miséria.
Sempre tivemos uma consciência epidérmica dos
problemas do crime. E só sabíamos dizer "qu
e horror!".
Mas esse filme nos faz entrar nos lamaçais, nas
chacinas, dentro de tudo que sempre detestamos ver.
Cidade de Deus não é o retrato condoído das
favelas; não tem um só traço de sentimentalismo. Ele é
também o nosso retrato, a 24 quadros por segundo, com
nossos rostos aparecendo por trás dos meninos de 10
anos se matando com metralhadoras e fuzis. Ali estão
visíveis todas as pistas de nosso caos, que levam à
sordidez de nossas classes dominantes, às mentiras
políticas, às falsas bondades, aos retóricos ideais
nacionais. O filme prova nosso despreparo para resolv
er as tragédias sociais, mesmo que houvesse vontade
política. O filme não conta o que aconteceu; o filme
mostra o que está acontecendo agora, sem parar,
enquanto o assistimos ou lemos estas linhas. O filme
nos revela que houve uma "mutação social", ética,
física. Ao sair do cinema, tive vontade de gritar nas
ruas: "E aí? Ninguém vai fazer nada? Há milhares de
crianças se matando e vamos continuar falando em
criminalidade como um caso de polícia?" E logo depois
penso: "Fazer o quê? Com que verbas, com que bilhões
de dólares, com que vontade política, com que
aparelhos do Estado, se o Estado está sendo tragado
para dentro da miséria armada?
Os fatos estão mais adiantados que a lei. Não adianta
esta eterna guerra triste de policiais mal pagos e
corrompidos (justamente) contra miseráveis lutando por
existir. Aquelas crianças armadas estão acima do bem e
do mal, sim. Precisamos de novos conceitos para
entender este problema de Estado e da sociedade. Filme
e fato são um retrato da sinuca de bico em que está o
país todo. Em Cidade de Deus, o documento ! invade a
ficção. Antes, havia uma "esperança" teórica; hoje há
o absoluto impasse. Há 40 anos talvez houvesse uma
solução higiênica, assistencialista. Hoje, não adianta
mais o papo de luta de classes, de conscientização,
cidadania. Eles já se "conscientizaram" sozinhos, em
outra direção. Tarde demais, políticos egoístas;
trata-se agora de um muro de chumbo, com raízes
fundas. Quem vai resolver? Com que verbas, com que
direito, com que poderes? E quem disse que eles ainda
querem que nós os "salvemos"? O filme de Fernando
Meirelles, co-dirigido por Katia Lund, é
extraordinariamente bem produzido, bem dirigido, bem
fotografado. Uma obra-prima; mas, não se trata de
dizer na saída: "Gostei ou não gostei." Não se
qualifica a descoberta de uma doença. "Cidade de Deus"
fura as leis do espetáculo normal, trai a indústria
cultural e joga em nossa cara não uma "mensagem", mas
uma sentença. Estamos condenados a viver com essa
tragédia, ela vai continuar crescendo como um tumor e
não es! tamos
preparados para curá-lo, porque fazemos parte dele,
com a polícia vendida, a lei vendida, os negociantes
envolvidos, aqui e nas fronteiras.
Esse filme vai ser visto pelo país todo, num terror
fascinado. Creio que vai provocar mudanças na conduta
política, pois faz parte de um processo de
conscientização que ninguém pode mais deter, dentro e
fora do cinturão da miséria. Qualquer projeto nacional
teria de passar prioritariamente pela salvação das
periferias. Infelizmente, os "projetos nacionais" ch
egam sempre depois.
"Cidade de Deus" já foi vendido para o mundo todo.
Será um sucesso planetário e vai revelar para sempre
nosso segredo: somos um dos países mais cruéis do
mundo."Cidade de Deus" mostra que o inferno é aqui,
atrás de Ipanema ou dos Jardins. Esse filme nos
desmascara para sempre."


O pior, eh que essa eh a realidade...........ainda naum assisti o filme, mas acredito q o comentário infundado de que o filme retrata uma violência gratuita, eh besteira......essa reaçidade eh a q a gente vive, e eh mais real do que nunca.......

Recebi essa crítica por email essa semana........

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