A vejo de cabelo vermelho, tatuagem no pescoço, símbolo significativo na
perna e olhos serenos, olhando um horizonte que ela não pode contemplar, pela
sua condição de viver à furtiva, na densa e fascinante noite.
E de lá, ela olha pra mim e diz: cacete, te tornaste uma maricas. Parecia
um maldito bicho acuado na esquina. Não foi isso que te ensinei!
E eu, de cabeça baixa, não consiguia responder.
Ela, com os olhos fixos no horizonte, esbraveja: Onde me jogaste esses
anos todos? Queria me ver queimar ao sol ao qual não posso mais sentir? Era
essa a estima que dizias ter por mim?
E o meu argumento era que me acovardei, pensando que vivia numa
verdade.
Ela ria, maldosamente da minha ingenuidade: Eu disse a você, crê no seu
instinto, no seu sentimento, no seu sentido e não na palavra de um idiota
qualquer.
Minhas palavras saiam cortadas de minha garganta, como se a voz tivesse
sufocad, e eu contava que vivia um conflito, do que no fundo sabia e do que
gostaria que fosse, de fingir acreditar.
Ela com o maior escárnio que toda Terra já poderia ter visto me disse:
Claro! O mundo feito de algodão! O mundo que não tem mentiras, traições,
mortes, crueldade. O mundo mágico na bolha estúpida que você sempre quis
viver!
E me indagou: E porque procurou a mim, se nunca iria receber e aceitar
os conselhos que te daria?!? Mas não adianta dizer, quem avisa amigo é,
porque eu nunca fui amiga de ninguém. Já vivi séculos e sei coisas que sua
imaginação não pode alcançar.
E por um instante, uma lágrima rolou de meus olhos.
Ela parou de contemplar o horizonte e com aqueles olhos enegrecidos,
furiosos, olhou fixamente em meus olhos: PÁRA DE SER RIDÍCULA! EU TE AVISEI,
NÃO ADIANTA DEIXAR NENHUMA MALDITA LÁGRIMA DESSA CAIR!
Voltando seus olhos para o horizonte, seu tom de voz voltou a mesma
indiferença: vai perder seu tempo, porque não tenho pena. Não tenho dor. Não
tenho medo, de nada.
Fechei meus olhos e lembrei de todos os anos que cultivei ao seu lado,
aprendendo a ser forte, a encarar minhas faltas de frente.
Por um momento, emudeceu e fechou os olhos. Seus cabelos vermelhos
reluziam um brilho lindo que o começo da noite refletia: Esse é o único momento
que posso ver o sol, no cair da tarde. Esse é o único momento que posso dizer
que recordo o que é sentir e pelo sol, perderia minha eternidade. Ele é a
única coisa verdadeira que existe. Ele e o sentimento que carregas dentro de
ti. Ele e o seu instinto. Eu sei o que pensas. Eu vejo todos os seus
pensamentos.
Enquanto ela piscava lentamente, seu semblate se tornou sereno e um
vento quente batia em seus braços desnudos: Eu não sinto nada. Nem frio, nem
calor, nem fome. E por mais que eu pensasse que um dia enlouqueceria na
solidão, em ouvir sem mesmo querer o pensamento das pessoas, descobri que, a
única coisa que não sei é o que vai acontecer no futuro. Tenho a eternidade
pra não planejar nada.
Você um dia partirá daqui e eu continuarei. Aprenda uma coisa, eu
te verei novamente, como já te vi outras vezes. Porque sou parte de
você. Sou você, mas você não aceita, como nunca aceitou. Sou cruel, fria,
realista. Não tem mundo de algodão, bolha, nada. Eu sou sua essência, sua
parte forte.
Ensino-te todas as vezes que deve confiar em você, nos seus sentimentos
primitivos, na sua segurança, na sua atitude. Que não deve se perguntar, não
deve pensar muito, deve se executar. Mas você tem essa mania estúpida de acreditar na palavra de qualquer
idiota que encontras.
Eu sou a parte de você que sabe o que é amar, o que é sentir. Eu sou a
parte de você que sabe o que é sofrer, o que é morrer. Eu sou a parte de você
que te mantém viva. Mas você me olha, desacreditando que eu sou parte de você, porque você
vê meu rosto pálido, a minha pela branca, os meus olhos negros.
E quando eu menos esperava, ela me estendeu sua mão, fria e branca como
cera: Eu sou a coragem. E o dia em que você aprender que somos uma só, eu
derramo a minha última lágrima, diferente dessa lágrima branca e salgada de uma
pureza imbecil. A minha é a lágrima amarga, que desce pelo rosto marcando tudo
o que foi a minha vida. O dia em que você aprender, que deve acreditar em
você, o dia que se olhar no espelho e ver que seu rosto é igual ao meu, eu
corro para o sol, para me livrar da eternidade e viver cada dia aí dentro,
como se fosse único.
Fechei meus olhos e vi, por um relance, tudo o que ela tinha dito. Tudo
o que já tinha vivido. Todas as vezes que nos encontramos ao longo de todas as
minhas vidas. Quando os abri, o sol brilhava magestoso em uma imensidão azul,
nunca mais vista.
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